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Sobreviventes do incêndio na boate Kiss falam sobre saúde mental nesta segunda

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Aos 26 anos, Kelen Ferreira, uma das sobreviventes da maior tragédia do Rio Grande do Sul, retorna para Santa Maria justamente na data em que o incêndio na boate Kiss completa sete anos. A terapeuta ocupacional, que hoje trabalha no Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), é uma das mais de 600 pessoas que escaparam da morte no dia 27 de janeiro, mas que convivem até hoje com as consequências daquela noite, sejam elas físicas ou psicológicas. 

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Kelen é uma das idealizadoras da campanha "Janeiro Branco", que fala sobre a saúde mental de quem teve a vida impactada após o incêndio, e ao lado de outros cinco sobreviventes, relatam como lidam com o trauma até hoje.

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- As pessoas não podem se esquecer do que aconteceu. É dolorido, é. Mas enquanto a gente relembra, a gente deixa a memória de todos viva. Estamos lutando. Uma coisa assim não pode se repetir - comenta Kelen.

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Às 19h de hoje, eles estarão na Praça Saldanha Marinho para uma roda de conversa com o público. O encontro faz parte da programação da sétima edição do "Janeiro 27: sem justiça não há futuro", que ocorre desde 2014 em homenagem às vítimas da tragédia.

Na cidade desde a tarde de ontem, Kelen foi até a Tenda da Vigília, na praça, para encontrar com amigos e familiares de vítimas que se concentravam para a caminhada até a frente da boate, na Rua dos Andradas, como parte das homenagens da programação oficial organizada pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e pela página Kiss: que não se repita. 

Em decorrência do incêndio, Kelen teve 18% do corpo queimado, principalmente os braços. Ficou em coma por 15 dias e internada por mais um tempo. Passou por mais de 10 cirurgias, inclusive pela amputação transtibial da perna direita. Confira, abaixo, uma entrevista com a jovem:

Diário de Santa Maria - O que significa esse tempo, esses sete anos na tua vida? 

Kelen Ferreira - Eu acho que a ferida sempre vai estar aberta, não sei se um dia vai cicatrizar. Janeiro é o pior mês que eu tenho que viver durante os 12 meses do ano, porque eu vou revivendo tudo o que eu vivi há sete anos. Remete a tudo, machuca. A gente vive aquilo mais intensamente conforme vai passando. Essa semana, por exemplo, nós demos bastante entrevista. É sempre bom falar, para que não seja esquecido, para que não aconteça de novo. Mas, se não houver fiscalização, isso vai continuar acontecendo.

Diário - Hoje você mora em Pelotas. Sair de Santa Maria foi algo que você planejou ou aconteceu? 

Kelen - Eu me formei em 2015 em Terapia Ocupacional na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), fiz o concurso, passei e vim trabalhar. Eu vim para cá (Pelotas) em agosto de 2017, quando me chamaram no concurso. Eu sempre gostei muito de Santa Maria e um dia pretendo voltar. Mas aí, depois do incêndio, eu sentia e via bastante coisa, e depois que eu saí daí melhorou. Deve, sim, ter uma relação muito grande com o incêndio, porque antes disso eu não tinha nada, não sentia nada. Quando eu estava esperando ser chamada para o concurso, eu pretendia voltar. Mas agora, que passou um tempo, eu não sei se seria bom para o meu lado espiritual. Eu tenho medo de começar a sentir coisas. Eu me sinto melhor aqui (Pelotas), mas não descarto voltar um dia.

Diário - E como é trabalhar dentro de um hospital? 

Kelen - Eu gosto muito da minha área e, depois do incêndio, eu tive a certeza de que era com isso que eu queria trabalhar mesmo. Aqui eu atendo pacientes adultos de várias áreas. Um dia quero trabalhar com queimados e amputados, mas já procurei uma especialização nessa área e não achei. Quero fazer vários cursos para poder me especializar mesmo. Agora eu estou terminando uma pós-graduação em tecnologia assistiva.

Diário - Teus pais moram em Alegrete, né? Como vocês lidam com a distância? 

Kelen - Eu vou visitá-los com frequência. Quando eu fazia a faculdade, já morava longe deles, mas depois do incêndio a proteção e a preocupação ficaram maiores ainda. Se eu saio, eu sempre aviso. Eles pedem que eu ligue quando eu volto, não importa o horário. Eu moro sozinha, agora até me acostumei. No início, foi complicado, porque fiquei um ano e meio em casa, em Alegrete, até me chamarem no concurso. E aí eu já estava acostumada, porque lá é cheio de gente, mas agora já me acostumei a ficar sozinha também. No início, tive mais problemas com adaptação. Pelotas é muito longe de Alegrete, mas eu falo com eles por telefone três ou quatro vezes por dia.

Diário - E como está a sua saúde hoje? Faz ainda algum acompanhamento médico ou tratamento? 

Kelen - Fisioterapia, eu não faço mais. Ano passado, eu transferi o meu pneumologista de Porto Alegre para Santa Maria. Fui ano passado e, esse ano, eu retorno. Tem que ter os cuidados, tomar remédio...

Diário - Você acompanha as notícias do julgamento e desdobramentos processuais? 

Kelen - Eu prefiro me manter afastada. Acho que a maioria dos sobreviventes deve falar isso. Não que a gente não busque por justiça pelo que aconteceu, mas quem perdeu familiar tem mais sede por isso. Mas perdi três amigas que poderiam ter continuado a vida nas suas profissões se não tivessem morrido. Nesses últimos dias, eu fiquei mais por dentro do que pode acontecer, acompanhando na TV e na internet. Vi que mais um réu entrou com recurso para ser julgado em Porto Alegre. Em relação a isso, eu acho que o julgamento deveria ser em Santa Maria. Em qualquer lugar, vai gerar comoção, porque qualquer pessoa vai se colocar no lugar de um familiar ou de um sobrevivente. Não tem por que fugir para outro lugar.

Diário - E você planeja acompanhar o julgamento? 

Kelen - Sim, planejo ir. Nós precisamos mostrar, essa é a hora. Nós queremos mostrar a realidade de cada um. Nós representamos várias pessoas que sobreviveram. Eu gostaria de estar presente para poder mostrar às pessoas e ao júri, principalmente, como é estar sete anos queimada e amputada. Mostrar qual a qualidade de vida que eu tenho dentro das minhas limitações. As pessoas tem que ver que o que aconteceu há sete anos vai refletir numa vida inteira. Não sei se me sinto preparada. O dia 27 já mexe muito com a gente, mas estamos todos esperando por esse dia. A gente acredita muito na justiça divina, que é a que não falha. Muitas vezes, vejo as pessoas falando para esquecer o que aconteceu ou deixar os que morreram descansar. Não se trata disso. Uma coisa assim não pode se repetir. Estamos lutando. Quando você sair, tu não imaginas que vai estar exposto a algum perigo. As pessoas precisam nos apoiar e lutar junto conosco. Recebemos muitas mensagens, de gente que nem nos conhece, pessoas que tiveram queimaduras, amputações, que se solidarizam, ou que perderam alguém, e isso é muito bom, nos conforta bastante e nos dá força para seguir em frente.

CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA
27 de janeiro 

  • 18h - Abertura do Janeiro 27 
  • 19h - Roda de conversa: Janeiro Branco. Exibição de vídeos e depoimentos de sobreviventes e familiares sobre saúde mental
  • 19h30min - Conversa com Jorge Brandão (CVV)
  • 19h45min - Palestra com Fabrício Carpinejar
  • 20h30min - Homenagem musical
  • 20h50min - Encerramento

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